Elias Salim Achar, o mascateiro libanês

Elias Salim Achar, o mascateiro libanês

"Pintado" foi quem amarrou os burros na figueira em 1932


Aldírio Simões


Na bucólica Florianópolis de 1932, a precariedade do transporte coletivo tornava-se um entrave para o desenvolvimento da pequena cidade. Os moradores empreendiam grandes caminhadas por estradas sinuosas para chegar ao Centro ou visitar parentes mais distantes, enquanto as famílias mais abastadas utilizavam os carros de cavalo, que tinham ponto de parada nas proximidades do Miramar. O único meio de locomoção de passageiros era o bonde puxado a burros, cumprindo a linha do trapiche municipal até a Agronômica, onde ficava a estação de embarque. Naquele ano, estudantes enfurecidos com o desinteresse das autoridades em providenciar um meio de transporte mais eficiente, que atendesse os reclamos da população, desatrelaram os animais e jogaram o bonde no mar, junto ao cais do Miramar.
Assustados com os gritos dos anarquistas, os burros fugiram, até serem amarrados embaixo da figueira por Elias Salim Achar, um rapazinho ruivo e sardento que hoje, aos 75 anos, continua conhecido como "Pintado". A odisséia da família Achar, como todas as famílias libanesas que aportaram em Florianópolis, merece um capítulo à parte na história da cidade. No início do século, o primo de Elias, Alexandre Moyses, migrou do Líbano e elegeu Santo Antônio de Lisboa para viver. Um lugar deserto e de belezas indescritíveis, com apenas algumas casas de estuque e uma bela igreja. Desbravador daquela região, o comerciante tinha uma visão futurista da vida, tornando-se anos depois um bem-sucedido comerciante com uma venda de armarinho, ferragens e secos e molhados.
Mas como sobreviver com um comércio naquele local, se os moradores do lugar não chegavam a duas dúzias de famílias, viviam da pesca e da roça encravadas nos morros íngremes, entre a densa floresta. O sábio Moyses colocou em prática o seu plano com as manhas e espertezas que aprendeu com parentes e ricos comerciantes libaneses. Mandou construir cerca de 30 casas - algumas ainda resistem ao tempo, localizadas ao lado da igreja de Santo Antônio - e distribuiu gratuitamente para pessoas que estivessem dispostas a fixar residência naquele lugarejo. Mas fazia uma exigência, as compras obrigatoriamente teriam que ser feitas na venda dele. Alexandre Moysés prosperou tanto que algumas décadas mais tarde, quando decidiu instalar seu comércio na Agronômica, doou as pequenas casas para seus moradores.
A saudade dos patrícios no Líbano era o maior entrave, mantinha notícias com os parentes na distante Beirute através de cartas que chegavam a demorar seis meses. Tanto insistiu que, no ano de 1926, o primo Salim Achar decidiu fazer uma longa viagem com a família para o Brasil, para conhecer Florianópolis, estimulado pelas belezas propagadas nas cartas do primo. Após uma cansativa viagem de um mês, chega ao porto de Santos e dias mais tarde desembarca no Rita Maria a bordo do navio Hoepcke. A senhora Vitória Achar, filha de uma família rica, embarcou com o marido e filhos num carro de cavalos desfilando elegância e exibindo jóias em ouro e brilhantes.
A chegada dos Achar em Santo Antônio de Lisboa foi festejada pela família de Moyses, mas aquele fim de mundo era completamente estranho aos costumes da burguesa dona Vitória.


 O jantar à base de feijão, farinha, carne seca e peixe seco, alimentos esquisitos para a cozinha árabe, servido à luz de uma pomboca (lamparina) a querosene, a arruaça dos macacos e a sinfonia das gralhas azuis na mata fechada em torno da casa deixaram a mulher horrorizada - estava determinada a retornar ao Líbano o mais rápido possível.
Os anos foram passando e a família Achar continuou em Florianópolis, ultrapassando os dois meses previstos. Dona Vitória insistia em voltar, mas o primo a convencia para continuar por aqui. Tentaram uma melhor adaptação em Tijucas, onde existia uma colônia árabe, mas as chuvas constantes faziam o rio subir e eles tinham que fugir numa pequena bateira estrategicamente amarrada nos fundos da casa. O velho Salim Achar rendeu-se às lamúrias da esposa e decidiu retornar a Beirute, mas o destino estava reservado para eles. Eclodiu a guerra e foram impedidos de embarcar.
A situação financeira já não era das melhores, mas o solidário Moyses decidiu ajudá-los, ao contratar o construtor Tom Wild para erguer uma casa na subida do morro do Chapecó. Para sobreviver na Ilha, Achar, que era formado em ciências contábeis em Beirute, foi trabalhar de marceneiro, atividade que desenvolveu até o resto de seus dias, e dona Vitória aposentou as jóias no fundo do baú e foi para a cozinha, vendendo seus doces, disputados pela colônia árabe.

Riquezas


Elias Salim Achar, o Pintado - aquele que amarrou os burros embaixo da figueira -, cresceu fazendo um pouco de tudo na vida. Mesmo depois de aposentado não aposentou a profissão de mascate, continuou vendendo perfumes para uma clientela de muitos anos, inclusive para as moças que residem nas casas ao longo da BR-101. Cresceu de olho nas riquezas deixadas pela família em Beirute, mas nunca conseguiu contatos com os parentes distantes. Após a Segunda Guerra Mundial as correspondências enviadas à capital libanesa nunca mais chegaram ao seu destino.
Conhecendo a Ilha como a palma da mão, Salim gosta de ser chamado de historiador e, dono de uma fértil memória, tem mesmo muita história para contar. Aos 75 anos continua vendendo vitalidade e discursando sobre qualquer assunto sobre a cidade antiga. "Quando jogaram o bonde puxado a burros n'água, foi o Mandinho quem explorou o primeiro ônibus para a Agronômica, quando ainda não existia calçamento. Era um Ford 1935 que ele mesmo dirigia."
A infância do garoto sardento foi na Agronômica. Exímio pescador de cocorocas nas praias do João Arsênio, Neném Valente, Carioni, Chico Olivério e Müller, todas desaparecidas com o aterro da avenida Beira-mar Norte. Caminhava descalço até o centro da cidade para o emprego na casa Cherem. Após servir o Exército, foi trabalhar por conta própria como mascate, percorria as praias do Norte de bicicleta vendendo mercadorias, até se instalar em definitivo com um atacado de armarinhos. Com aval do comerciante José Rosa Cherem conseguiu empréstimo bancário, comprou um Ford 37 e percorreu o Estado comercializando armarinhos.



TRABALHO
Depois de servir o Exército, Salim virou vendedor de armarinhos no Estado

 

Perfumes eram sucesso certo

Sustentando o adágio "estou velho mas não estou morto" continua exercendo acentuado interesse pelo sexo oposto e aproveitou, ainda durante muitos anos, a venda de seus produtos para manter um contato mais próximo com as mulheres. Alisa os dedos impregnados de perfume no braço da madame para ela sentir a fragância. "Eu comercializava meus perfumes de todas as maneiras, já troquei por peixe e camarão com os pescadores e quando as moças não dispunham de dinheiro para comprar eu dava de graça; com mulher eu sempre tive um bom coração."
Elias Salim Achar passou boa parte de sua vida fazendo política na função de cabo eleitoral, sempre ligado à UDN e depois à Arena. Contribuiu para a eleição do governo Irineu Bornhausen em duas gestões, e para o PSD, a pedido de Aderbal Ramos da Silva, elegeu Ivo Silveira governador e Francisco Grilo deputado federal. "Quando menino tive um contato muito direto com o doutor Aderbal. O meu pai ajudou a construir a sua mansão e eu freqüentava a casa dele. Não foram poucas as vezes que embalei as filhas Silvia e Anita no bercinho e subia os morros para procurar orquídeas para dona Rute. Eu conhecia esses políticos todos. Ganhei eleição para o velho Bulcão Vianna, Wanderley Jr. , Paulo Fontes e Genésio Lins."
Foi dura a vida do garoto Pintado, recolhendo vidro, osso e alumínio na rua, e arrochando material usado na construção da ponte Hercílio Luz, guardado na olaria do Corsini, na Agronômica, para depois vender no ferro-velho do Pantaleão. Antes de completar 18 anos, submetido ao regime autoritário do pai libanês, as escapadas para dançar nos clubes Concórdia e 25, no morro do Chapecó, contavam com o apoio da mãe, que deixava a porta encostada. "Eu fazia uma trouxa sob o cobertor para o velho pensar que eu estava dormindo. Quando o pau comia no clube eu fugia pela janela, porque não podia ter problemas em casa."
Sócio do Clube de Caça Couto Maglhães, ele freqüenta a Ilha do Campeche há quase 50 anos. Apaixonado por pescaria, conhece todas as ilhas próximas a Florianópolis. "Cheguei a matar garoupa de 50 quilos e arraia de 100 quilos, na ponta Sul da Ilha. Eu era o parceiro preferido do cônsul americano que morava na mansão do Luiz Carvalho, na Agronômica. Ele costumava levar a mulher dele junto, era uma galega de fechar o comércio. Ela de biquíni, arreganhada dentro da canoa. Nossa Senhora. Nem posso dizer o que eu fazia depois". Mas dá para imaginar, Salim.
Os mergulhos nas águas claras do Miramar para apanhar moedas jogadas pelos freqüentadores, os aperitivos com os amigos no bar São Pedro, Gato Preto e Cova do Diabo, em frente ao Campo da Liga, as noites muito bem perdidas no bordel da Mariquinha do Sobrado, fazem parte de um passado distante que ele relembra emocionado. "Sempre gostei muito das noites calmas do Ribeirão da Ilha, sentado na praia. Ainda ouço o belo cantar em árabe de minha mãe Vitória. Mas hoje prefiro a praia do Sonho, onde vivo feliz no aconchego da minha doce Maria", define. (AS)

Texto originalmente publicado no jornal AN Capital de Florianópolis em 26 de setembro de 2000
Infelizmente não se consegue mais encontrar na Internet,  então decidi republicar mas não encontrei as fotos originais publicadas junto com a matéria. 

Comentários

  1. Estava procurando essa matéria fazia tempo! História da minha família... obrigada mesmo

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